Conduzir pela longa estrada

Boyhood (2014)
Honesto, directo e ambicioso, Boyhood oferece-nos ainda o presente de ter sido filmado ao longo de cerca de uma década, apesar de, no total, o tempo de filmagem perfazer apenas cerca de 40 dias. 
Durante 12 anos, Richard Linklater acompanhou o crescimento de uma família cujo núcleo se expande e mingua, em adaptação orgânica, natural e própria do que representam as relações humanas.

Aparentemente simples, a sua estrutura complexifica-se à medida que as ligações se quebram para se refazerem mais à frente. É bom saber também que o tempo aqui passou na realidade, o que confere a todas estas relações ficcionais a sensação de serem baseadas em vidas que podem estar a acontecer mesmo ali na casa ao lado. A passagem do tempo real assume maior importância conquanto a evolução dos personagens vem acompanhada da evolução do próprio do actor, física e psicologicamente, o que traz diferente perspectivas sobre o modo de filmar e da interacção entre actores, realizador, equipa e até mesmo de como se mantém ou altera a visão de cada um dos intervenientes sobre a história e interpretação.

Teorias à parte, Boyhood senta-se numa cadeira de baloiço à porta de uma típica casa do Texas, descontraidamente bebe o seu chá gelado e prepara-se para tomar muito do tempo de quem o quer ver para contar o percurso de uma normalíssima família. Casamentos, divórcios, adolescência, a escola, as bolsas de estudo, a faculdade, o sexo, as experiências, praticamente nada de que não se tenha ouvido falar ou vivido.

Ao longo de quase três horas de filme, o espectador é confrontado consigo mesmo, com as reflexões próprias de cada lado da história. A evolução dos filhos através da adolescência até à entrada na idade adulta poderia tornar-se predominante mas o foco no crescimento dos adultos acaba por assumir tanta ou mais importância. Sim, porque Boyhood não é condescedente e aquilo que nos mostra, para além de não ser nem definitivo nem conter juízos de valor de grande monta, é a evolução de cada interveniente. Os adultos mostram as suas falhas, mostram como ser-se adulto não significa saber tudo e os erros continuam pela vida fora - afinal, faz parte. Escolhem-se os parceiros errados, fazem-se escolhas e as respostas continuam a ser as mesmas que a adolescência avidamente procura responder, na ansiedade própria de crescer.

Boyhood podia chamar-se Childhood mas parece propositadamente optar pela primeira designação como que tentado mostrar que a infância ou adolescência não são estados definitivos e definidos na evolução de cada um - embora em termos práticos assim seja encarada. 
Interessante seguir a criação de núcleos familiares fora da órbita inicial, à medida que os membros decepados do núcleo original se vão regenerando e criando novas vidas, começando do zero novamente, percorrendo tantas vezes quanto necessário a adolescência de sentimentos, de oportunidades, de novos começos, novas relações. Tudo é novo, tudo é duplamente novo, novidade vivida em tempos diferentes, com visões diferentes mas simultaneamente com a sensação de que se percorre novo caminho com novas ferramentas.

Dentro de Boyhood, a simplicidade é a chave de poder dar-se a tantas interpretações quantas as pessoas que o vejam. Porque as pessoas estão ali, estão ali as vidas do dia-a-dia, com que todos se podem relacionar e ligar, não se limitando a mostrar a visão de apenas um dos intervenientes mas a de todos, sem julgamentos - as conclusões ficam para quem vê.

A paisagem igualmente simples ludibria tanto quem assiste ao filme como as personagens, aquelas longas e intermináveis linhas rectas de estrada, a paisagem árida, contínua e desprovida de interesse, contudo hipnotizante. Naqueles momentos não se pensa em nada, segue-se sempre em frente a apreciar o caminho sem entrar em considerações filosóficas. Essas também têm lugar, sobretudo quando o pequeno Mason cresce e se torna um acérrimo crítico das tecnologias de informação e da aridez do mundo moderno. Eterno incompreendido, conclui que o melhor mesmo é apreciar o caminho porque, no fundo, ninguém sabe muito bem como é que as coisas acabam ou qual o fio condutor que guia os protagonistas enquanto aqui andam.

Classificação: 4/5


Por CS

Ouroboro ou como aprender a amar a contradição

Interstellar (2014)
Ficção científica? Se a resposta a esta pergunta for afirmativa quando vem à memória Interstellar, então a vida vivida é ficção. Colocar o rótulo ficcional no mais recente filme de Nolan é demasiado redutor para algo que almeja muito mais que apenas o céu mas se queda por terra - no melhor dos sentidos.
No início era o verbo e é pelo início que Nolan começa - passando o pleonasmo: do pó vieste, ao pó tornarás. Interstellar, entre as estrelas, até ao infinito e mais além é um filme sobre raízes, sobre aquilo que liga os seres humanos independentemente do local onde essas ligações se estabelecem. O espaço sideral é aqui irrelevante, talvez apenas um pretexto para ludibriar ou desviar a atenção, muito ao estilo de Nolan - que poucas vezes percorre o caminho mais óbvio ou directo para chegar ao destino proposto. Quando se parte do pressuposto que se vai assistir ao início, tudo se prepara e revela como sendo o derradeiro momento, como se de um ouroboro se tratasse. 

Interstellar é um filme que se dobra sobre si mesmo, contrário à definição de sequência lógica e cronológica. Os diferentes mundos tocam-se, os tempos intercalam, o passado é o presente é o futuro e não necessariamente por esta ordem. Para quem procura compreender através da lógica (embora a pedra de toque seja a ciência), este não é o caminho mais acertado - pelo menos, não por entre estas estrelas.
Muitas vezes acusado de frio e distante na sua abordagem cinematográfica, Nolan parece ter-se inspirado em linguagem ao estilo Malick, tanto na aproximação humana como no modo como filma - Interstellar é um lírico deleite visual, estreitamente acompanhado por uma das mais inteligentes bandas-sonoras feitas nos últimos tempos em cinema. Humano mas não tanto, Nolan optou pelo espaço sideral para não se tornar tão próximo e acaba por não conseguir evitar o excesso de sentimentalismo que ataca algumas das sequências - falta de experiência tornada contradição?

A natureza humana é o que está no centro deste universo fílmico, nada mais do que isso, as fraquezas, as mentiras, as omissões, a falta de objectividade, a teimosia, a incapacidade emocional. Quando Coop parte para explorar novos mundos que possam substituir um exausto planeta terra, a sua viagem é pessoal - bem como para a restante equipa. Durante cerca de três horas, a busca prende-se com correr atrás das raízes e nem num futuro distante essas raízes cessam de surgir intactas sob a forma de cubos de memórias. Aquilo que Coop descobre nada mais é do que a sua ligação com os variados «eus» coexistentes em vários momentos diferentes, tentando comunicar entre si apesar de essa comunicação se encontrar aparentemente vedada. A criatividade e subjectividade sobrepondo-se à ciência conhecida como meio de escapar ao desconhecido, é essa a chave proposta numa contínua e aparente contradição. Se se aprende a viver com a contradição e tentar entender os saltos temporais de Interstellar, é um filme brilhante; se se tentar dar-lhe o sentido temporal tradicional (e, simultaneamente, artificial, que a própria vida não se representa a si mesma como um todo temporal contínuo e sem quebras), então Interstellar é chato e confuso. Entenda-se que ambos os filmes existem em paralelo, por isso Interstellar é tão genial quanto terrível, consumando e corporizando em si mesmo a eminente contradição que é o seu conteúdo.

Nolan criou o seu wormhole, constantemente dobra e desdobra a folha de papel, aproxima e afasta, foca e desfoca. Os seus personagens procuram planetas habitáveis distantes da terra mas aqueles planetas não respondem ou são imprevisíveis, gélidos, não soam simplesmente a casa. O que é que acontece agora?, pergunta-se a certa altura. Procura-se a resposta mas ela apenas existe quando é transposto o buraco negro, quando o seu vórtice desconhecido é o único caminho. Entrar na escuridão para encontrar a luz, encontrar as respostas que sempre permaneceram num único local: em casa (onde quer que ela possa ser encontrada). Ir procurar respostas longe quando elas sempre estiveram ali, é essa a mensagem em código Morse que Nolan está a mandar. E, para isso, o papel dobra-se, a caneta atravessa ambas as metades, os tempos encontram-se. Será que se fala de tempo ou de memória? Afinal, será que os personagens de Interstellar chegaram a partir? 


Classificação: 5/5


Por CS

Após a bonança

Sono de Inverno (2014)
Criar ilusões é uma característica humana, intrínseca, usada para fugir à certa realidade ou simplesmente por nela se encontrar bem estar - nessa representação que chega a parecer que é necessidade.
A visão de Nuri Bilge Ceylan acerca da descrita capacidade inata, vai tornando-se recorrente. Paira sobre os personagens uma dormência dos sentidos, uma contemplação infinita, como se o tempo fosse durar para sempre. No fundo, ele suspende-se sempre que em Sono de Inverno o realizador se perde na figura imponente de Aydin (anteriormente actor, agora rico, culto, escritor e filantropo anónimo). O tempo suspende-se quando a câmara tenta penetrar nos meandros do personagem através da sua nuca para depois se perder na escuridão encontrada, insondável, indizível.

No ar, por todo o filme, existem ideias que não são ditas, os debates assumem a aparência de discussão académica até ao momento em que os intervenientes deixam de fingir ou deixam de ter paciência para manter aparências.
Por entre casas escavadas e construídas na rocha, pela paisagem belíssima da Anatólia Central, Turquia, movem-se seres humanos que lentamente se mesclam com as rochas. A partir de uma certa idade pouco se muda, alguém diz, e acrescente-se que a distinção entre pessoas e o espaço inóspito que habitam pouco a pouco se vai diluindo. Obstinados, determinados, são os homens e mulheres de Ceylan, percorrendo atalhos de uma vida adiada, sonolenta não só no Inverno que irrompe tempestuosamente mas pelas outras estações afora. Sem objectivos, eivados de dependências materiais e emocionais, agarrados a uma miséria que tanto prospera no fausto como na pobreza.

No hotel de que Aydin é responsável, chegam e partem constantemente pessoas apreciadoras da natureza às quais se apega contando histórias e recebendo em troca as experiências dos viajantes. Mas no Othello (assim se designa o hotel) monta-se o palco em honra da sociabilidade farsante, a mesma que permite a coexistência de filantropia e exacerbado poder económico no mesmo personagem. 
Da peça apercebem-se pedaços, fragmentos, à medida que caem as máscaras, as mesmas que Aydin coloca simbolicamente sentado à secretária do escritório onde desenha há muito tempo a escrita da história do teatro turco. Quando a caça se adensa, algumas presas, apesar de mortalmente feridas, continuam a agarrar-se teimosamente à vida, persistindo, insistindo em respirar - tal como o coelho que o ex-actor alcança na imensidão nevada.

Dentro de espaços fechados, aos poucos os homens e mulheres de Ceylan perseguem-se e cansam-se, à semelhança do enorme esforço que é feito para laçar o cavalo selvagem da Anatólia que Aydin tanto queria para utilizar no hotel. Os animais selvagens que lutam e despendem de toda a energia possível para se manterem livres, lentamente se entregam a esse sono de Inverno, desistem de querer a liberdade que outrora fazia parte. Lentamente, também os homens e mulheres que habitam Othello se acostumam a não viver, adormecidos pelo conforto, pela falta de ter para onde ir, pela necessidade de calor ou simplesmente porque mudar já não parece uma opção. Já passou demasiado tempo, agora é tarde, confidencia alguém entre lágrimas.

Não se julgue etéreo ou até superficial, este Sono de Inverno, muito pelo contrário, é denso como o espesso manto de neve que se abate sobre o território das gentes obstinadas. Através dele, muitas conversas de pendor filosófico, nada é deixado ao acaso, nenhuma palavra é dita em vão, pesada e ponderada, todas elas atiradas para atingir pontos nevrálgicos. 

Visualmente belíssimo, Sono de Inverno é contemplação e confronto, é seguir a pé por atalhos gelados e descobrir que o gelo também derrete, que o calor do fogão ou da lareira ou do gerado pela ingestão de demasiado álcool é capaz de colocar a descoberto o que antes ficara ocultado pela aparente serenidade da neve. Por debaixo dessa aparente leveza, encontram-se as rochas, as casas escavadas nas rochas, firmes, eternas, imutáveis, fortalezas aprazíveis à semelhança das quais muitas vezes os seres humanos se tentam constituir. Assim aparente ser o Sono de Inverno mas pode tratar-se apenas de mais uma ilusão - afinal, o cinema é ilusão/representação. 


Classificação: 4/5

Por CS e PP


A luz que contém a sua ausência

A Bela de Dia (1967)
Tradicionalmente considerado filme erótico, Belle de Jour, do aclamado Buñuel, é, na realidade, um filme sobre o sonho. Contraditório? Assista.se à espiral de realidade dentro da realidade que é no fundo um sonho que é no fundo a realidade que representa a história de Séverine e Pierre, a contradição, a ilusão, omissão e engano são termos que virão à memória.

A personagem interpretada magistralmente por Catherine Deneuve representa a bela adormecida dos tempos modernos, em aparente dormência e frieza, que não procura mais que a excitação do que não é permitido e lhe habita os sonhos. Os sonhos de Séverine não acontecem apenas quando esta dorme ‐ com frequência o marido irrompe e lhe interrompe fantasias questionando‐a sobre em que pensa.

Bela de Dia, alter ego que assumirá ao entrar em funções pouco recomendadas numa conhecida casa de passe em Paris, à noite retoma a sua inexistência. 
Percorrer Belle de Jour é não ter a certeza de que passos estão a ser dados embora de início o filme conduza a essa ilusão ‐ afinal, quem não quer ter certezas? Sob a capa da vulgaridade e de certo fetichismo, oculta‐se uma espiral de acontecimentos cuja natureza não é completamente preto no branco. Esse imaginário ‐ também ele contraditório ‐ de binómios de raiz maniqueísta é recorrente em Bela de Dia. Eterna dualidade entre preto e branco que se complexifica com a chegada da personagem do conde e com a introdução do conceito de sol negro. Este sol negro do conde remete para a luz que contém a sua ausência sem se anular e não exclusivamente para a existência de elementos opostos ‐ dentro de um habita o outro sem que a existência seja incompatível desse modo.

Séverine conduz ou é conduzida pelas estreitas vielas de uma vida dupla a que se sente inexplicavelmente atraída ‐ e que é, ao mesmo tempo, uma dupla vida de sentimentos. De dia, sente‐se viva e preenchida, à noite profundamente aborrecida, ainda que aos poucos a experiência diurna acabe por influenciar a sua personalidade nocturna. Lentamente, as duas Séverines fundem‐se mas ambos os mundos se fundem de igual modo, tornando cada vez mais difusas as fronteiras rígidas que os separavam. Tão rígidas como o jogo de forças, poder, submissão, domínio e ordens com que se familiarizou na casa de Anais, as fronteiras quebram‐se para o lado mais fraco e a Séverine nocturna será inundada pela experiência e preenchimento da Séverine diurna.

À quoi pense toi, Séverine? Pergunta Pierre com frequência mas Séverine está ausente a viver em pensamento a vida que gostaria de viver, sonha acordada. No final, contudo, os sonhos cessam e são possíveis inúmeras especulações sobre se Séverine se encontra acordada ou se está finalmente a viver o seu maior sonho na realidade. Tal como a cena da misteriosa caixa do cliente japonês na casa de Anais, que Buñuel nunca quis explicar, também as conclusões e definições permanecem difusas e dificilmente definitivas.

Todo o filme é composto de subtilezas, desde as referências a felinos em momentos chave (na sua aproximação simbólica e sexual à mulher) até à associação onírica entre a carruagem com sinos e as fantasias de Séverine (a ironicamente severa Séverine). Subtilezas surrealistas, talvez, naquela que foi a grande aposta de Buñuel após o seu exílio mexicano e que não foi aposta ganha, tendo em conta o choque entre conservadorismo da sociedade de então e as imagens de perversidade e sexualidade.

Classificação: 4/5

Por CS

A Última Dança

Johnny Guitar (1954)
A utilização do termo western para descrever Johnny Guitar parece desadequada, como aliás tudo parece desadequado em Johnny Guitar. Simplesmente porque é redutor chamar-lhe um western quando contém em si quase todas as tipologias de filme, pelo que o melhor é esquecer as etiquetas para ver Vienna, a protagonista, e o seu pistoleiro. Com Johnny Guitar  (ou melhor, Johnny Logan), forma par amoroso aparentemente impossível e rege o saloon homónimo com mão de ferro, tentado manter afastados os habitantes conservadores de conservadora cidade na fronteira do Arizona.

Verdadeira self made woman, não é totalmente esclarecido em que medida ou em que bases é feita a construção sofrida do seu enclave, embora Vienna dê a entender que foi tarefa árdua. Instalada em ambiente hostil, o seu saloon não tem enquadramento físico explícito (que fica em segundo plano), como quase todas as sequências, não sendo, contudo, necessário que esse enquadramento seja feito. Apenas sabemos que àquela cidade irá, um dia, chegar o comboio e que será o ponto de viragem para todos - apenas Vienna o deseja, os restantes habitantes e, sobretudo, a sua nemesis Emma Small tentam a todo o custo afastar a vinda da civilização.

Interessante ainda que no cerne de Johnny Guitar não esteja quem dá nome ao filme mas sim duas personagens femininas. A importância concedida a Johnny Guitar no título, o pistoleiro que substituiu as armas pela guitarra que transporta, será perceptível à medida que vamos conhecendo o seu passado com Vienna. Ao contrário do que se espera num western clássico, é uma mulher que se encontra no centro de todos os acontecimentos, assumindo inclusivamente uma posição preponderante e dominante logo nos primeiros minutos de filme: Vienna assoma do topo das escadas, dirigindo-se a quem a interpela sempre naquele local, o segundo andar do saloon. Raramente surge armada e refere que não acredita na força das armas mas a personalidade de tal modo forte faz com que esse pormenor seja relegado para segundo plano. Vienna não usa armas nem anda a cavalo, assim como também não é a típica meretriz - não sendo, claramente, o estereótipo da mãe de família que commumente surge neste tipo de filmes.

Quem é Vienna? Ou, melhor dizendo, o que é Vienna? Uma mulher que subiu a pulso na vida, está à frente de um saloon/casa de jogo mas não acredita na sorte. Repetidas vezes pede apenas para ouvir a roleta unicamente pelo som que emite. É também uma mulher que sofre por amor e, embora possa parecer estranho, é essa ligação que representa a grande razão de ser de Johnny Guitar. Aliás, são as várias ligações amorosas as causadoras de sentimentos de vingança e ódio presentes em Dancin' Kid (também pistoleiro e gangster) e Emma Small, as personagens despeitadas - o primeiro por nunca ter conseguido que Vienna o amasse verdadeiramente, a segunda pelos ciúmes dessa ligação (ainda que o que o liga a Vienna seja superficial e passageiro).

Na base, são duas mulheres em confronto e é em torno de ambas que as forças vitais do filme se movimentarão. Emma Small (pequena em apelido e literalmente) deixará para trás o luto pelo irmão acidental e misteriosamente assassinado para assumirem definitivo o seu papel vingador ainda que não justiceiro porque sem fundamento objectivo, quer destruir Vienna e isso é quanto basta. O seu carácter mesquinho e pequeno fica bem representado no momento do discurso às "tropas" que perseguem Vienna e Johnny Guitar (em fuga após a tentativa de linchamento público perpetrada sobre Vienna), quando o seu rosto surge em grande plano mas parcialmente obscurecido pela sombra da árvore sob a qual se posta.

A oposição entre Vienna e Emma é finalmente assumida quando a primeira surge vestida totalmente de branco, tornando-se claro o posicionamento de ambas, dado que Emma envergará até ao final o vestido de luto - que, sem o véu, toma aparência religiosa no sentido fanático. Branco e preto em oposição, o bem e o mal delineados na totalidade e sem zonas cinzentas.

Quando o saloon de Vienna é alvo de fogo posto, torna-se quase impossível não pensar na Segunda Grande Guerra, quando finalmente Viena de Áustria sucumbe às mãos dos aliados e é irmãmente dividida pelos mesmos. À altura das filmagens de Johnny Guitar, estava-se em plena Guerra Fria e a todo o vapor pela era McCarthy, de caça às bruxas - todos os simpatizantes ou ligados de alguma forma ao Partido Comunista eram perseguidos. É por esse motivo que ainda hoje um dos grandes mistérios que envolve Johnny Guitar se prende com o verdadeiro guionista: reza a lenda que o nome que vem nos créditos apenas lá se encontra para encobrir um dos perseguidos da grande caça às bruxas, que não pôde tornar o seu nome público.

Em Johnny Guitar existem inúmeros géneros ou até inúmeros filmes. Em primeiro plano, um triângulo amoroso pouco intenso - Joan Crawford na sua frieza típica confere um afastamento a Vienna que não permite que as emoções transpareçam. Em segundo plano, um caso complicado de despeito, o de Emma, apaixonada por Dancin' Kid, querendo contudo vê-lo morto juntamente com Vienna, a eterna rival. 

Trata-se de um mundo visto de modo maniqueísta, preto no branco, aparentemente simplista nesse jogo em que se move mas complexo porque baseado em emoções. O duelo que opõe as duas mulheres é um duelo sem armas, apesar de, a espaços, armas sejam utilizadas - mas estritamente quando necessário. Ironicamente, Johnny Guitar é um gritante filme de gritantes cores (e o primeiro a cores do realizador Nicholas Ray), fazendo quase esquecer as oposições simplistas, saturado mas trazendo para primeiro plano a inesquecível personalidade de Joan Crawford - também inesquecível a imagem de marca de lábios intencionalmente pintados de vermelho e fora das linhas naturais. O extravagante uso da cor não faz esquecer os cenários inverosímeis e infantilmente desenhados, contudo ajuda a mitigar alguns dos desvios pelos quais é pouco provável que o olhar não siga.

Johnny Guitar não representa o típico western em nenhum aspecto mas isso também é perceptível num contexto de renovação linguística por que este género cinematográfico passava à época. A introdução de personagens centrais femininos, longe dos estereótipos masculinos e da linguagem clássica, os laivos de musical - visíveis no tema final, interpretado por Peggy Lee -, a secundarização das armas com recurso a mais subtis mecanismos de vingança (apesar de se poder assistir com clareza à morte de um personagem com um tiro na cabeça), um certo imobilismo dos personagens (que circulam em espaços restritos de acção) levam para longe da mente aquilo que se entende por western na acepção mais pura do género.

Vienna constrói o saloon incrustado na rocha, base sólida, e aguarda pacientemente a chegada do movimento, não se trata aqui de longas perseguições no deserto, resgatar o território ou chacinar nativos americanos. Vienna permanece num ponto fixo e a busca vem até si, por força de carácter ou do decorrer natural dos eventos. 

A roleta da sorte pára no momento em que o confronto, a tensão, estão prestes a estalar mas permanece em funcionamento ao longo de Johnny Guitar, não só de meios próprios e concretos vive uma mulher.

Classificação: 4/5

Por CS

A Cartilha

Boa Noite, e Boa Sorte (2005)

O preto e branco está associado à cinematografia clássica embora metaforicamente acompanhe a ideia de cinzentismo, a algo que permanece imutável e/ou pertence ao passado. Utilizado no cinema hodierno, é sinónimo de linguagem, de mensagem, de algo propositado e com finalidade, não uma limitação técnica como outrora o foi.

O caso de Boa Noite, e Boa Sorte poderia ser um desses momentos de vanguarda linguística e, de facto, tem todos os ingredientes para o ser. Inexplicavelmente, talvez lhe falte aquilo que não reside na técnica mas no que agrega um filme de tal maneira que o torne inesquecível. Boa Noite, e Boa Sorte está muito longe de ser inesquecível, arriscando-se com muita probabilidade a ser lembrado só como um filme de Clooney.

Centrado em interessantíssimo tema, na verdade, tem, como se disse, tudo para ser um bom filme, inclusive grandes actores. Porque é que o tudo não resulta? Foi feito pelas regras e para transmitir uma mensagem que tem cabimento em cinema mas não como se se tratasse de um livro ou transmissão radiofónica. Na maior parte do tempo, impera o estático, o estético sem volumetria, sem grandes inspirações ou impulsos que sustentem o facto de não existir um clímax propriamente dito.

Onde se situa o palco de Boa Noite, e Boa Sorte? Na América da caça às bruxas, dos perigosos comunistas infiltrados, da censura dos meios de comunicação, da obsessiva perseguição do senador McCarthy, em plena Guerra Fria. Clooney transpõe de forma irrepreensível todo esse ambiente mas mostra-o em duas dimensões, com discursos, com disputas de jornais e televisões que existiram na realidade mas que neste contexto necessitavam de maior dinamismo. 

Entre mãos, temos um punhado de homens e mulheres de características pinceladas a lugares comuns, como que construídos a partir de um manual de História norte americana ou a partir de outros filmes, outras visões, outros documentários. Aquilo que se encontra em Boa Noite, e Boa Sorte aparenta ter sido recortado de variadas cartilhas sem almejar algo de seu, de próprio.

O casal proibido, o jornalista fraco, o jornalista forte, o ajudante do jornalista forte, o director de jornal benevolente. Estas personagens, tal como os acontecimentos, são reais mas Clooney quase os situou numa qualquer novela da vida real, movimentados pelos cordelinhos da História, sem personalidade própria, sem contornos, deambulando por competentes cenários, competente enquadramento e audaz mensagem.

Quis passar-se a mensagem dos tempos que ninguém nega ser importante e, curiosamente, hoje tão ou mais importante do que à época: a dos meios de comunicação em evolução (a televisão) e do seu poder de manipulação das massas através da política. Essa mensagem é muito clara e é a razão de ser de Boa Noite, e Boa Sorte, trazendo para a actualidade um tema que poderia parecer ultrapassado ou esquecido e que, afinal, se enquadra tão bem hoje como há 60 décadas. O Clooney conhecido activista das liberdades (sem ironia entendida na expressão) quis expor e tomar posições através do cinema.

A imagem de um jornalismo que mostra a verdade por oposição às areias movediças da política é aqui retratada com justiça e hombridade, até mesmo com a seriedade e sobriedade que homens como Murrow merecem. Talvez por entender a sobriedade com tanto afinco, Boa Noite, e Boa Sorte queda-se por ser rígido, pouco dinâmico pese embora competente em todas as áreas. Belíssima fotografia, actores competentes, argumento competente. Falta-lhe muita coisa para as três dimensões, fica pela competência de seguir o guião sem exagerada inspiração, sem algo que nos tire o fôlego, sem algo que espante. Competente mas desinspirado.

Classificação: 2/5

Por CS

Uno e divisível

Lady Snowblood (1973)

Para lá de qualquer possível atracção visual, apresenta-se um complexo plano de vingança pessoal - e, talvez, quem sabe, universal, de purificação espiritual, expurgar de sofrimento e corrupção.

Fala-se de Lady Snowblood, um dos filmes que reconhecidamente inspiraram Quentin Tarantino para o seu Kill Bill. Não se gerem ilusões, o imparável realizador recolheu daqui muitos elementos mas soube dar-lhes a roupagem de que necessitavam para se integrarem no novo século e, afinal, são  universos e códigos de linguagem muito diferentes - embora a homenagem prestada seja de algum modo emocionante, emocionada, apaixonada.

Em Lady Snowblood, as aparências iludem até certo ponto e em inúmeros momentos é possível que estejamos a caminhar numa espiral, num labirinto ou, muito simplesmente, numa encenação - como o descer do pano no final de umas das sequências dá a entender. É uma história real ou uma banda desenhada? Uma vingança pessoal ou universal? Quem se esconde quem e quem procura quem, na realidade? Estamos mesmo no Japão do final do século XIX ou apenas num cenário?

Entre nocturnos e valsas triufantes, Yuki procurará dar seguimento àquilo que a sua mãe iniciou e não pôde terminar. Nascida no submundo, filha do verdadeiro submundo e das intenções mais subterrâneas, uma mulher nasce bebendo do seu próprio sangue envenenado para cumprir apenas uma missão muito específica. Para Yuki, a infância representou um longo treino de guerra com o objectivo de limpar a honra perdida mas também de purificar o cenário local da corrupção das almas. Yuki surge em noite de nevão, a neve que vinga mas simultaneamente limpa aqueles que se corromperam e à própria Yuki, cujo carma se anuncia anos antes do seu nascimento - tal como a própria parece sugerir.

A predestinação para a vingança é continuamente relembrada embora Yuki seja capaz da emoção - isso é visível em escassos momentos do filme e servirá talvez para que não seja esquecido de que falamos de um ser humano capaz de compaixão. Confrontada com a duplicidade da natureza humana, é a primeira a retirar a máscara e mostrar-se na sua plenitude, não tendo, aliás, muito a esconder desde o início.

O que faz de LadySnowblood um filme corpulento (no melhor dos sentidos possível), é precisamente aquilo que não entra no festival de sangue com que o espectador é presenteado - neste aspecto não existem ilusões, os efeitos visuais são trazidos para impressionar, de modo directo e sem rodeios. Ao mesmo tempo que do início ao fim membros são cortados e o sangue artificial jorra de todos os poros possíveis de encontrar no corpo humano, vai sendo expurgada e contada a história recente do Japão, não sem entrarem em confronto a tradição nipónica com a modernidade ocidental. A bandeira norte-americana colocada ao lado da japonesa em determinado momento talvez não seja inocente, bem como o modo como será tratada a segunda - olhar demasiado crítico para a linguagem cinematográfica nipónica.

O aspecto graficamente explícito e os momentos representados pela banda desenhada não são um acaso ou um devaneio, já que na concepção do argumento se encontra o autor de manga Kazuo Koike, em cuja obra o filme se baseou. A narrativa visual acompanhada da voz off do jornalista é uma janela por entre a qual corre uma fresca brisa de linguagem cinematográfica.

Em última análise, o sol que nasce sobre Yuki no início representa não só o seu próprio nascimento real como também uma nova oportunidade, um renascimento social, depois de ultrapassados os tempos sociais conturbados a que não assistiu. Yuki vinga a sua história pessoal mas também surge para eliminar os vestígios daquele passado recente para dar lugar ou passagem a uma nova era. O sol que nasce, o sol nascente sobre Yuki e sobre o território, sobre um novo território, uma oportunidade de recomeçar.

A mulher vingadora que nasce no interior da prisão, é aprisionada num carma que a precede, que precede o seu nascimento. Aprisionada pelo destino, Yuki mais não representa que o novo mundo irrompendo com estridência nas velhas estruturas, ultrapassadas e indesejadas. Fá-lo com dupla violência e fôlego, dúplice que também surge enquanto personagem da peça de teatro em que foi lançada. Sem hipótese de escolher o seu caminho e apesar de algum espaço para raras emoções humanas, parece ser apenas o meio de concretização de desejos que não são os seus. Os desejos que lhe brilham repetidamente nos olhos foram-lhe incutidos por outros, actua sem que possa algum dia destrinçar se essa é a sua vontade real.

Quando se pensa em Lady Snowblood, vem à memória o irrealismo dos efeitos especiais e a banda-sonora idílica, perfeita, todavia existem muitas camadas, mais do que o olho atinge. Por entre espadas e mortes, existem duplicidades não facilmente explicáveis. Duplicidade de uma vida que não é na verdade uma vida real, homens duplos de si mesmos irrompem pelo cenário após o aparente fim da tragédia - o filme continua para lá do cair do pano, parecendo querer transmitir que o seu objectivo vai para além das fronteiras do instituído. Sociedade tradicional em confronto com as novas ideias, traçando ou sugerindo um caminho diferente, construído de raiz e com um único propósito, completamente focado embora tão rígido como as estruturas do passado que espezinha. Contradição? É possível que represente uma contradição mas nenhuma das personagens do filme - ou tratar-se-á de uma tragédia grega? - está preocupada com isso, faz parte do caminho espiralado, da vingança dentro da vingança, dos percursos que se desdobram para dar a ilusão da escolha que não existe. Contradição? Sim.

Classificação: 4.5/5

Por CS
Repulsa (1965)

Aqui a eternidade

A Desaparecida (1956)

Um muro de que se faz luz, uma parede que se abre para a pradaria, uma casa que temporariamente alberga vida a pretexto de um desaparecimento - a busca incessante que serve de premissa a A Desaparecida de John Ford é a grande protagonista - assim tem início o filme.

Longe de todos os epítetos que o submergem, aqui tenta-se sobreviver à obsessão de Ethan - o confederado nunca assumidamente derrotado - em procurar a sobrinha raptada pelos índios nativo-americanos. Um procura aparentemente longa (são cinco anos reais e cerca de duas horas de filme) esconderá outras motivações? Poder-se-á calcular que sim embora tal nunca seja claramente definido ao longo do filme.

Ethan surge na abertura do filme e da casa da família fabulosamente enquadrado por uma das mais deslumbrantes sequências em cinema (e que as palavras são sempre insuficientes para descrever), chegando por fim de uma guerra que quase parece imaginada - aliás, por onde terá andado Ethan entre o final da guerra civil e a data de início do filme? Mas uma porta se abre para o mundo, onde antes se encontrava obscuridade, parecendo querer absorver no seu calor a frieza da silhueta do forasteiro Ethan.

Apenas subrepticiamente é sugerido que Ethan é uma espécie de forasteiro: andou longe de casa 3 anos após a guerra, volta com dinheiro não numerado e sem grandes pormenores quanto aos trilho que sulcou - um pouco à semelhança dos trilhos deixados pelos índios, Ethan sulca os seus de forma a deixar apenas poeira e pistas confusas.

A busca pela sobrinha raptada é um verdadeira odisseia, polvilhada por alguns avanços e recuos. Ethan, o homem que já não possuía nenhuma outra razão aparente para voltar a partir, oportunamente pode deixar de ser importunado pelo passado e pela curiosidade dos parentes e parte para procurar aquela que se tornará no seu único elo de ligação com a vida familiar. 

Ethan envelhece nesta derradeira busca que mais não é que a igualmente derradeira tentativa de se procurar, de se compreender, de se encontrar - ainda que talvez o faça sem consciência de tal. A meio da jornada, enterrará a sua última ligação à confederação numa tentativa de encerrar o que está para trás. Debbie não representa apenas o elo de ligação à estabilidade nunca conseguida de uma família, da rotina, da luta diária contra terreno inóspito para o tornar fértil - mas também a luta da protecção contra invasores.

Em A Desaparecida, o que se encontra desaparecida é a estabilidade, são as fronteiras, tal como o ritmo do filme nos incita a sentir. Sem nunca cessar, saímos do cenário instável da guerra civil, deixado definitivamente no passado e entramos na quase interminável corrida contra o tempo - entre índios, búfalos, perseguições, brigas intestinas, diferenças familiares e humanas.

O primeiro plano que nos obriga a sair de casa para a luz intensa do deserto, abandonando o conforto daquelas quatro paredes onde muitas vezes o pequeno-almoço é simultaneamente religioso e civil, é o mesmo plano que nos volta a enclausurar. O homem que se abre para o exterior voltar a encerrar dentro de si a esperança com que retorna e esse desejo não é tão simples como parece. 

Complexo, conflituoso, à semelhança das relações humanas aqui representadas, é ao mesmo tempo um desejo de conforto e de liberdade em que a casa surge como aconchego mas também clausura - e talvez o muro que surge no genérico faça parte dessa dupla natureza que é, no fundo, somente humana. Um muro é barreira e estímulo para que se o destrua e muitas vezes os homens se dilaceram nesta dualidade sem necessariamente existir um fim.

Por todos os motivos e mais alguns, A Desaparecida não é só um western, não é só um filme de índios e cowboys, não é só um filme, é um tratado, um enredo, uma trama que não apresenta apenas as óbvias lutas por território, é uma luta do homem contra e a favor de si próprio - contradição após contradição.

Classificação: 5/5


Por CS

Esculturas Incompletas

Nebraska (2013)

Woddy Grant. Um homem que coxeia pela vida fora, dependente do álcool, uma incógnita para todos até para si próprio, um homem sem vitória, sem glória. Uma vida como tantas outras, entre tantas outras, a preto e branco, sem grandes laivos de criatividade, sem grandes feitos ou sem feitos dignos de menção. Um casamento porque sim, dois filhos porque sim, os sonhos perdidos pela calçada como migalhas de pão à espera de serem encontradas, como preces ansiando por serem ouvidas.

Em Nebraska, reside a derradeira jornada - A jornada -, aquela em que são investidas as últimas forças, em que ainda parece possível redimir todas as falhas, todas as ausências, todas as omissões. Num pedaço de papel Woody irá colocar a esperança e os sonhos que não realizou, como se disso dependesse tudo o que está para trás e que não foi concretizado.

Vão sendo desfiadas ao longo da viagem até Lincoln para reclamar o almejado prémio diversas memórias e facetas dos vários intervenientes - em que raramente as versões coincidem. Curiosa a construção de várias perspectivas sobre a realidade, sem que se chegue propriamente a uma conclusão - não é esse o objectivo. Cada interveniente mostra apenas a sua versão da história, não necessariamente igual à do vizinho ou do primo.

Woody faz parte da família Grant e os homens Grant falam pouco, todos eles. Alexander Payne brinca com esse factor e introduz uma imagem monte rushmoriana assaz jocosa aquando do reencontro da família na casa da tia Martha. Aquele silêncio rochoso, as palavras arrancadas a ferros, a informação sucinta e resumida, homens esculpidos à semelhança do Monte Rushmore, versões inacabadas, incompletas - recorrendo à definição do próprio Woody.

No final, não vencer torna-se pouco importante, estreitam-se laços familiares e, acima de tudo, laços humanos. Recebe-se o brinde de ter passado finalmente tempo em conjunto, após uma longa vida de percalços e falhas de comunicação. Traz-se para casa um boné de vencedor sem o ter sido na acepção moderna da palavra, longe do sucesso material ou até mesmo de uma existência de glórias e feitos dignos de menção.

Nebraska fala-nos sobre pessoas mal esculpidas, feitas de cansaço e falhas, fala de uma família conturbada como tantas outras famílias mas com desejo de reparação através da arte. A diferença fulcral entre as esculturas rochosas e as pessoas é que estas últimas têm a oportunidade de aceitar as suas limitações e viver com elas o mais pacificamente possível. Aceitar que nem tudo é aceitável mas que talvez seja possível conviver com isso, viver com isso, sobreviver bem com isso.

Apesar de ser um bom filme, assenta em premissas já muito vistas em cinema, lugares-comuns suficientes para deixarem a sensação de que se encontra em esforço, tentando juntar as peças e não dando o devido espaço ao espectador para que tire as suas conclusões. Está tudo lá.

Classificação 4/5

Por CS
 Ossos (1997)


Tratado da Apatia

Em Ossos deambulam corpos que carecem de vida, respiram, olham incessantemente um horizonte que não lhes responde, assim como também não lhe fazem perguntas. É em silêncio que se movem pelas sinuosas vielas do bairro das Fontainhas, num movimento pendular, mecânico, só porque têm de manter o equilíbrio precário do microcosmos.

No seio da apatia, surge uma nova vida em que todos os sonhos poderiam residir. Em todas as vidas residem todos os sonhos, no começo. É o mecanismo da necessidade que os queima e deixa fenecer os sonhos e é nesse mecanismo que a vida se desenha - entre a rua e as casas de portas fechadas, entre um quarto inundado de gases nocivos e um sofá de pensão mal afamada.

Em Ossos, a beleza é crua, concretizada em grandes planos de profundo tédio, aborrecimento e apatia, uma enorme sonolência percorre os rostos belos mas marcados que Pedro Costa mostra incessantemente. Quietos, calados, olhando em aparente profundidade todavia profundamente perdidos na solidão de cada corpo sem carne, sem esperança, com loucuras na cabeça - sempre aquele desejo de morrer e acabar com a dormente espera até ao fim inevitável.

Cada corpo faz a sua dança de sobrevivência fingida, falsa, em falso, alimenta esporadicamente as necessidades básicas - «Já não como há 3 dias», lamenta-se o pai da criança indesejada, ao mesmo tempo que mastiga o tempo e a indiferença. Entre o bocejo e o lamento, a única vida possível é lentamente extirpada, a criança que nasce fruto do longo aborrecimento surge como uma ameaça séria ao equilíbrio de nadas em que as personagens se movem.

Tecnicamente, Ossos não tem grandes segredos, é um filme de claro-escuro, que respira através da obscuridade e do eterno jogo entre o que se torna visível pela luz e aquilo que fica convenientemente ocultado na sombra. Optando pela simplicidade, segura nas suas mãos fortes a essência dos rostos impiedosos, tristes, desenhados a carvão, pouco emocionados, cansados. Por entre frestas de portas, espreitam muitas vezes, como que temendo a luz ou a exposição, numa ambígua violência do silêncio.

Ossos é um filme que vive das ausências, despido de paliativos, despido de efeitos, real como a vida, desolado como o desejo da morte, desesperançado - em que as pessoas se colocam lado a lado alimentando a réstia de esperança de que possam comunicar sem, contudo, o conseguirem.

Silêncio e arrependimento, alimento de corpo que já não quer receber alimento, vidas sem vida, labirintos de ruas degradadas a que se chama casa com fantasmagórica familiaridade, criando raízes num chão falso, recebendo ofensas sem ter forças para retorquir.

É por tudo aquilo que não é dito que Ossos é um filme que não fica na prateleira mas salta para a vida, embora sem fúria, embora sem aparente centelha - mas é porque a centelha não existe nestas vidas e talvez não seja possível fazer fogo de onde se ausenta fonte que o alimente.

Classificação: 5/5
Por CS
Ossos (1997)

Moonrise Kingdom (2012)