Ouroboro ou como aprender a amar a contradição

Interstellar (2014)
Ficção científica? Se a resposta a esta pergunta for afirmativa quando vem à memória Interstellar, então a vida vivida é ficção. Colocar o rótulo ficcional no mais recente filme de Nolan é demasiado redutor para algo que almeja muito mais que apenas o céu mas se queda por terra - no melhor dos sentidos.
No início era o verbo e é pelo início que Nolan começa - passando o pleonasmo: do pó vieste, ao pó tornarás. Interstellar, entre as estrelas, até ao infinito e mais além é um filme sobre raízes, sobre aquilo que liga os seres humanos independentemente do local onde essas ligações se estabelecem. O espaço sideral é aqui irrelevante, talvez apenas um pretexto para ludibriar ou desviar a atenção, muito ao estilo de Nolan - que poucas vezes percorre o caminho mais óbvio ou directo para chegar ao destino proposto. Quando se parte do pressuposto que se vai assistir ao início, tudo se prepara e revela como sendo o derradeiro momento, como se de um ouroboro se tratasse. 

Interstellar é um filme que se dobra sobre si mesmo, contrário à definição de sequência lógica e cronológica. Os diferentes mundos tocam-se, os tempos intercalam, o passado é o presente é o futuro e não necessariamente por esta ordem. Para quem procura compreender através da lógica (embora a pedra de toque seja a ciência), este não é o caminho mais acertado - pelo menos, não por entre estas estrelas.
Muitas vezes acusado de frio e distante na sua abordagem cinematográfica, Nolan parece ter-se inspirado em linguagem ao estilo Malick, tanto na aproximação humana como no modo como filma - Interstellar é um lírico deleite visual, estreitamente acompanhado por uma das mais inteligentes bandas-sonoras feitas nos últimos tempos em cinema. Humano mas não tanto, Nolan optou pelo espaço sideral para não se tornar tão próximo e acaba por não conseguir evitar o excesso de sentimentalismo que ataca algumas das sequências - falta de experiência tornada contradição?

A natureza humana é o que está no centro deste universo fílmico, nada mais do que isso, as fraquezas, as mentiras, as omissões, a falta de objectividade, a teimosia, a incapacidade emocional. Quando Coop parte para explorar novos mundos que possam substituir um exausto planeta terra, a sua viagem é pessoal - bem como para a restante equipa. Durante cerca de três horas, a busca prende-se com correr atrás das raízes e nem num futuro distante essas raízes cessam de surgir intactas sob a forma de cubos de memórias. Aquilo que Coop descobre nada mais é do que a sua ligação com os variados «eus» coexistentes em vários momentos diferentes, tentando comunicar entre si apesar de essa comunicação se encontrar aparentemente vedada. A criatividade e subjectividade sobrepondo-se à ciência conhecida como meio de escapar ao desconhecido, é essa a chave proposta numa contínua e aparente contradição. Se se aprende a viver com a contradição e tentar entender os saltos temporais de Interstellar, é um filme brilhante; se se tentar dar-lhe o sentido temporal tradicional (e, simultaneamente, artificial, que a própria vida não se representa a si mesma como um todo temporal contínuo e sem quebras), então Interstellar é chato e confuso. Entenda-se que ambos os filmes existem em paralelo, por isso Interstellar é tão genial quanto terrível, consumando e corporizando em si mesmo a eminente contradição que é o seu conteúdo.

Nolan criou o seu wormhole, constantemente dobra e desdobra a folha de papel, aproxima e afasta, foca e desfoca. Os seus personagens procuram planetas habitáveis distantes da terra mas aqueles planetas não respondem ou são imprevisíveis, gélidos, não soam simplesmente a casa. O que é que acontece agora?, pergunta-se a certa altura. Procura-se a resposta mas ela apenas existe quando é transposto o buraco negro, quando o seu vórtice desconhecido é o único caminho. Entrar na escuridão para encontrar a luz, encontrar as respostas que sempre permaneceram num único local: em casa (onde quer que ela possa ser encontrada). Ir procurar respostas longe quando elas sempre estiveram ali, é essa a mensagem em código Morse que Nolan está a mandar. E, para isso, o papel dobra-se, a caneta atravessa ambas as metades, os tempos encontram-se. Será que se fala de tempo ou de memória? Afinal, será que os personagens de Interstellar chegaram a partir? 


Classificação: 5/5


Por CS

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